Um crânio de três milhões de anos comprova a existência do Australopithecus afarensis, o mais antigo ancestral da humanidade. Ficou provado que os machos eram bem maiores que as fêmeas. Essa diferença de tamanhos sugere que eram polígamos como os gorilas senhores de um bando de fêmeas bem menores do que eles.
Há quatro milhões de anos a humanidade não existia. Mas uma criatura, pelo menos, trazia nos ossos aquela que seria a marca registrada do Homo sapiens, nós mesmos. O Australopithecus afarensis nome daquela criatura tinha um cérebro minúsculo. Mas andava de pé como nenhum macaco seria capaz de fazer.
E os humanos fariam melhor num futuro distante. O primeiro fóssil de Australopithecus afarensis, desenterrado há 20 anos, na Etiópia, no norte da África, era uma fêmea, recebeu o apelido de Lucy. Mas faltava o crânio de um macho para que a espécie ficasse completa. Este ano, dois pesquisadores americanos anunciaram o achado: o mais completo crânio de um afarensis, já batizado o filho de Lucy porque seu dono foi do sexo masculino. Embora bem mais alto que sua mãe 200 000 anos mais velha , ele tinha os ossos iguais aos dela. E ambos certamente pertenceram à mesma espécie.
Lucy nasceu, cresceu e teve filhos numa paisagem de fronteira, entre a floresta tropical africana e a savana de grama rasteira, arbustos e umas poucas árvores. Aí, onde é hoje a Etiópia, seu esqueleto permaneceu durante quase quatro milhões de anos, absorvendo minerais do solo até virar pedra. Assim foi encontrado, em 1974, pelo antropólogo americano Donald Johanson, atualmente no Instituto das Origens Humanas, na cidade de Berkeley, Califórnia, nos Estados Unidos.
Johanson já era um cientista respeitado, mas daí para frente tornou-se uma celebridade. Apareceu na capa e na primeira página das principais publicações do mundo como autor de um dos maiores achados do século, no campo da Antropologia. O motivo é que Lucy era a mais antiga ancestral do homem encontrada até aquela data.
Mas havia, ainda, outro motivo, talvez mais importante. Ela provou, pela primeira vez, que o cérebro grande não foi essencial ao aparecimento do homem. Um duro golpe para o orgulho do mais inteligente dos animais. Mas não havia contestação. Lucy tinha um volume craniano de míseros 500 centímetros cúbicos. Pouco mais de um terço do volume craniano de um homem moderno, que chega a 1 300 centímetros cúbicos.
De resto, Lucy tinha 1,05 metros de altura, e passaria facilmente por um chimpanzé. Johanson mesmo, com toda a experiência que tinha, mais tarde confessou seu engano. O primeiro osso que eu vi foi o do braço. E achei que pertencia a uma macaca. O fato é que não era, com toda a certeza. Porque Lucy sabia andar de pé, e muito bem a estrutura de seus ossos, dos quadris para baixo, tinha a forma correta para sustentá-la em posição ereta. E foi esse jeito de andar sem qualquer ajuda da inteligência que transformou o afarensis num novo modelo de animal. Gerou um grande tronco que, mais tarde, abriu-se em diversas ramificações.
Os novos ramos eram variações sobre o mesmo tema: outras espécies do gênero Australopithecus que também tinham cérebros pequenos e também andavam de pé. Enfim, mais de um milhão de anos depois de o último afarensis desaparecer do planeta, surgiram os primeiros humanos.
E foi somente nessas criaturas que o cérebro começou a se ampliar. Mais ou menos como um subproduto de mudanças anteriores, em partes supostamente menos nobres do corpo de Lucy. Metade macaca, metade humana, ela não era tão ágil quanto o homem seria no futuro. Mas é provável que nenhum outro animal, antes dela, tenha tido o mesmo tipo de habilidade na locomoção.
O paleoantropólogo americano William Kimbel, do Instituto das Origens Humanas, explicou a SUPERINTERESSANTE que o povo de Lucy pode não ter sido o primeiro a ficar de pé. Talvez tenha havido outras espécies, antes do Australopithecus afarensis. Mas, por enquanto, ele é o pioneiro e não há outro candidato à vista.
Mesmo que houvesse, não seria a maior preocupação de Kimbel, que nos últimos anos esteve ocupado em descobrir que espécie de animal era realmente o afarensis. Kimbel já havia ajudado Johanson a coletar os restos de Lucy, na Etiópia. E este ano os dois anunciaram a descoberta de um novo crânio e uma montanha de outros ossos.
Com esse material à mão, eles começaram a reconstituir a história do afarensis. Decifrar ossos é a principal atividade dos paleoantropólogos, e eles certamente sabem o que fazer. Analisam minúcias de cada peça do esqueleto humano, assim como dos animais de anatomia próxima à nossa, como a dos macacos.Também sabem distinguir, só de olhar, se um osso pertence a um jovem ou um adulto, a uma fêmea ou a um macho.
Apesar disso, e sem querer fazer trocadilho, os paleoantropólogos às vezes encontram um osso duro de roer. Foi o que aconteceu com o afarensis, cuja anatomia era extremamente irregular. De acordo com a ciência dos ossos, os machos dessa espécie eram bem maiores do que as fêmeas. E numa proporção que muitos pesquisadores tiveram receio de aceitar, ou se recusaram a admitir.
Imagine um casal humano em que o homem tivesse 2,10 metros e a mulher 1,50. Não é impossível, mas é raro: a média atual de diferença de altura gira em torno de 15%, algo como uma mulher de 1,50 metro e um homem de 1,80. Nos mais antigos ancestrais do homem, em vez disso, a média se aproximava dos 40%. Estima-se que as fêmeas tivessem pouco mais de 1 metro de altura, e os machos, por volta de 1,40.
Os críticos acharam demais. Imaginaram que houvesse uma grande confusão de ossos, e a própria existência do afarensis foi posta em xeque: os fósseis reunidos com esse nome podiam muito bem serem partes dispersas de vários animais. Estava armado o dilema, já que seria impossível discutir a evolução de uma criatura indefinida sobre a qual nada se podia dizer de concreto, ou confiável.
Duas décadas após a descoberta de Lucy, os céticos finalmente tiveram de entregar os pontos. O Australopithecus afarensis realmente possuiu uma anatomia disforme. E não apenas ele, pois a diferença de altura entre os sexos aparece em outras espécies do gênero Australopithecus. A desigualdade cai apenas nas espécies humanas: o Homo habilis, o Homo erectus e, afinal, o Homo sapiens, a nossa espécie.
Só se pôde esclarecer tudo isso graças ao crânio recém-encontrado na Etiópia. O raciocínio é simples: ele é semelhante ao de Lucy em todos os aspectos. Logo, pertence à mesma espécie que ela. Ao mesmo tempo, seu dono era um típico macho afarensis. Ou seja, era bastante alto, enquanto Lucy era baixa.
Foi decisivo nessa disputa o trabalho do zoólogo inglês Bernard Wood, da Universidade de Liverpool. Ele notou que o maxilar dos macacos machos é um pouco mais espesso que o das fêmeas. E sugeriu que essa variação fosse usada para classificar fósseis, além de macacos. Wood estava mais certo do que pensava: o maxilar foi à peça chave na hora de classificar o crânio do Australopithecus afarensis como de um macho.
A confiança que ganharam com essa prova animaram os paleoantropólogos a partir para o ataque. Eles agora começam a pensar nos efeitos da diferença entre os sexos. De que maneira ela poderia afetar o dia-a-dia de uma espécie? Não há resposta pronta para essa pergunta. Mas existe uma pista instigante: de que a diferença de altura entre os machos e as fêmeas esteja ligada à forma de acasalamento.
Quem duvida, pode checar com os macacos. Eles geralmente seguem uma regra simples: se existe uma grande diferença de tamanho entre os sexos, os macacos são polígamos. Um único macho fecunda todas as fêmeas do seu bando. Quando a diferença é bem pequena, machos e fêmeas se acasalam em duplas, no melhor estilo Adão e Eva.
Nesse caso, o Australopithecus afarensis e os outros australopitecos seriam polígamos. Existe mesmo a tentação de aplicar essa regra aos primeiros homens. Obviamente, o que vale para um macaco não tem de valer para o homem. Ainda que seja um homem de um milhão de anos atrás, desprovido de civilização ou cultura.
Mas é bom lembrar que, nesse estágio da evolução, o homem enfrentava as leis da natureza com muito menos preparo do que hoje. Por isso, tendia a responder aos desafios mais ou menos da mesma forma que os macacos, seus mais próximos parentes. Muitos biólogos, geneticistas e ecologistas acreditam que vale a pena seguir aquela pista. Estão estudando centenas de bandos de macacos do mundo inteiro.
Para chegar ao homem, portanto, o primeiro passo é verificar como a regra de acasalamento funciona entre os símios.
O gorila macho é um extremo. Absurdamente maior do que a fêmea numa proporção que pode chegar a 160 quilos, contra apenas 90, ou a 1,70 metros contra 1,20 de altura , ele vive como um sultão. Fecunda todas as fêmeas de um bando no qual todas as crias têm o mesmo pai.
Os jovens machos logo saem para formar seu próprio bando; às vezes ficam, mas não têm acesso às fêmeas. No extremo oposto se encontram os gibões, pequenos macacos de 5 a 10 quilos, conforme a espécie em nenhuma da quais se nota diferença marcante de altura das fêmeas com relação aos machos. E os gibões, ao contrário dos gorilas, adotam a monogamia. Acasalam-se aos pares.
Assim, se essa regra fosse aplicada ao Australopithecus afarensis, ele seria polígamo, como o gorila. Puro palpite? Nem tanto, diz o americano William Kimbel. Ele concorda que esse tipo de análise é quase uma adivinhação. Como tatear os fatos com os olhos vendados. Mas, em princípio, está correta. Só não se pode esquecer que ela dá uma idéia geral sobre o que pode ocorrer. Não mais que isso.
Antes de tudo porque, entre a poligamia e a monogamia puras, machos e fêmeas relacionam-se de muitas maneiras possíveis. Vejam-se os chimpanzés. Entre eles, os sexos são mais ou menos iguais (com uns 20% de diferença na altura a favor dos machos). Apesar disso, não são monógamos. Apostam numa coluna do meio: um sistema de acasalamento coletivo, em que várias fêmeas copulam com diversos machos. Sem problema.
Nos bandos de chimpanzés, compostos por até 100 animais, às vezes surgem turmas de machos. Cinco ou seis indivíduos se associam por alguns dias, ou algumas semanas, para caçar, pegar frutas ou enfrentar outros chimpanzés nas querelas da tribo. E também copulam juntos, mais ou menos com as mesmas fêmeas. Chega a lembrar das comunidades que os hippies tentaram, sem sucesso, implantar, nos anos 60 e 70.
E mesmo entre os chimpanzés essa idéia não funciona muito bem. Porque todo bando tem um líder, e ele quase sempre estraga a festa. Se tiver disposição, consegue impor sua inclinação por qualquer fêmea, contra o protesto de qualquer macho. Feitas todas as contas, o líder torna-se pai da maior parte das crias. Mas nunca de todas, como acontece com o sultão gorila.
Para encurtar a história, entre o gorila e o chimpanzé, há bastante espaço onde encaixar o Australopithecus afarensis, diz Kimbel. Difícil é saber em que nível entre o harém total e o livre sexo grupal. Para isso seria preciso descobrir até que ponto os Australopitecos afarensis machos eram mais altos que as fêmeas. O grau de diferença em altura determina o nível de poligamia da espécie, explica Kimbel. Ele mesmo não corre riscos. Meu único palpite é que os afarensis colocam-se entre o gorila e o chimpanzé.
Este não é o fim da história. Resta o Homo sapiens, e aí existe o peso da inteligência e da cultura. Costumes, tradições, hábitos: parece impossível estimar o peso de tudo isso sobre a preferência dos primeiros homens, em matéria de acasalamento.
Um fato curioso é que a maior parte da atual população humana é monogâmica. E também as primeiras populações eram monogâmicas, a julgar pela diferença de tamanho entre os sexos. Mas grande parte dos povos mais antigos do planeta é polígama. Os árabes são um exemplo, mas há muitos outros, até mais antigos, na África, na Ásia e na América.
Em uma lista dos 250 povos mais importantes, estudados no início do século, 193 adotavam a poligamia. Pesquisas recentes registram que, em muitos deles, a diferença de altura do homem para a mulher é maior que a mesma diferença nas sociedades monogâmicas. Sinal de que a regra do acasalamento deixou marca nas sociedades humanas. As diferenças não passam de desvios estatísticos na média de cada povo. Mas não podem ser desprezadas.
Por Flávio Dieguez - Superinteressante
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