A descoberta desse fóssil,
um dos raros esqueletos quase completos do Homo erectus, deu início a uma
fascinante tentativa de reconstruir, em detalhes, o modo de vida dos ancestrais
do homem moderno. O objetivo é descobrir se tais criaturas, embora bem
diferentes, também poderiam, de alguma forma, ser considerados humanos.
Com um metro e sessenta de
altura, mas ainda trocando os dentes de leite, ele certamente não estava
preparado para sair com os caçadores. Talvez fosse sua primeira vez: estava ali
apenas para observar e aprender bem cedo a técnica arriscada que distinguia sua
espécie das muitas outras da vizinhança. Estas sabiam há milênios acompanhar os
leopardos ou os tigres-dentes-de-sabre, para aproveitar os restos que deixavam.
Matar animais vivos, porém, apesar de perigoso e difícil, trazia uma vantagem
inédita naqueles tempos: significava suprimento regular de carne, essencial ao
funcionamento de um cérebro não muito pequeno.
Os braços compridos, o
andar bamboleante, a garganta incapaz de pronunciar palavras, o herói dessa
história ficou conhecido como o ‘menino de Turkana’ porque viveu às margens do
vasto Lago Turkana — onde é hoje o Quênia, no nordeste da África — e morreu
quando tinha apenas nove anos. Embora não tenha sobrevivido à sua primeira
lição de caça, seus ossos venceram o tempo. Preservados por mais de 15 000
séculos em ótimas condições, eles se tornaram inestimável fonte de informações
sobre uma época em que o homem nem sonhava existir. Em compensação, existiam
‘outros homens’, criaturas batizadas de hominídeos porque eram parecidos, mas
essencialmente diferentes dos seres humanos modernos.
Extintos muito antes que
estes últimos surgissem, os hominídeos permanecem em grande parte um mistério.
O menino de Turkana tornou-o ainda mais fascinante, pois se comportava de
muitas maneiras, como os futuros seres humanos. A seu modo, ele era humano. Pelo
menos é isso que defende um dos astros da ciência contemporânea, o
paleoantropólogo queniano Richard Leakey. No final do ano passado, Leakey
publicou um livro, admirável em muitos sentidos, no qual descreve a descoberta
dos fósseis do menino — um esqueleto praticamente completo, feito raro na
pesquisa antropológica.
Até então quase nada se
sabia da anatomia do Homo erectus, a espécie de hominídeo a que o menino
pertenceu. Perto de cem indivíduos dessa espécie haviam sido encontrados, em
várias partes do mundo, mas isso geralmente significava achar um pequeno pedaço
do crânio ou dos maxilares, ou, bem mais raramente, um fragmento do fêmur ou da
bacia. Com o menino, não só a variedade de ossos cresceu, mas também a
qualidade. E o exemplo mais impressionante, de longe, são os dentes. Só o fato
de terem sido achados constitui um desses acasos que fazem crer em milagre:
todos eles haviam caído, logo após a morte do dono, e se espalhado pela areia,
sobre uma área não desprezível.
Mas puderam ser recuperados
porque a disposição geral dos ossos sugeria que o menino havia morrido em águas
rasas, possivelmente um rio tributário do Lago Turkana, há muito tempo extinto.
Bastou, assim, acompanhar o leito seco para encontrar diversas peças do
esqueleto, inclusive os dentes perdidos. Além disso, foi uma grande vantagem à
água ter desfeito os tecidos da boca e afrouxado os dentes antes que se
petrificassem colados ao maxilar. Soltos, eles deixaram exposta a raiz, uma
valiosa fonte de informação. Desde 1984, quando o menino foi descoberto, já se
sabia que seu maxilar não era de adulto, pois o terceiro dente molar não havia
saído e o segundo começava a sair.
Num menino moderno, isso
denota idade por volta dos 12 anos, mas a análise da raiz mostrou que 11 anos
seria um número mais próximo da realidade. A precisão é importante porque está
em jogo, na verdade, uma delicada comparação entre duas espécies: o homem atual
e o Homo erectus, cuja biologia nunca pôde ser observada diretamente. A
comparação, no entanto, foi feita por autênticos magos, entre os quais a
antropóloga Holly Smith, da Universidade de Michigan. Surpreendendo o próprio
Leakey, ela explicou como podia decifrar a biologia do menino de Turkana.
Caso não tivesse morrido,
ele poderia, por exemplo, seguir o padrão do chimpanzé, cujos filhotes não
crescem muito entre a adolescência e a fase adulta. Em média, a taxa de
crescimento extra seria de 14%. Como o menino de Turkana estava entrando na
pré-adolescência e tinha 1,60 metros, o acréscimo seria de 22 centímetros.
Parece muito, mas seria maior ainda se o erectus estivesse mais próximo do
padrão humano, na qual o acréscimo é de 23%, apontando para uma estatura bem
perto de 2 metros. Leakey acredita que os números reais do menino de Turkana
estariam num meio-termo, de modo que sua idade não chegaria aos 11 anos das
crianças modernas, mas superaria um pouco a média dos chimpanzés, de sete anos.
Por isso, considera-se que
ele morreu aos nove anos. A esse tipo de análise se dá o nome ‘história de
vida’. “Essencialmente, é uma descrição de como um animal vive”, explica
Leakey. O mais importante é que, a partir de uns poucos dados, podem-se deduzir
muitos outros, informações decisivas sobre a biologia de uma espécie qualquer.
Quanto dura à gestação de suas fêmeas e quantos filhotes ela tem de cada vez?
Com quantos anos os filhotes se tornam independentes dos pais e quando se
tornam sexualmente maduros? São algumas perguntas que a história de vida
permite responder. Está claro que isso abre possibilidades inimagináveis para o
estudo do passado.
“É um meio de ver criaturas
reais em lugar de meros ossos petrificados”, escreve Leakey. Depois de analisar
os dentes e outros ossos do menino de Turkana, deduz-se, por exemplo, que os
membros de sua espécie viviam em média 52 anos, enquanto os homens modernos
alcançam 66. As mães, provavelmente, tinham o primeiro filho aos 13 ou 14 anos
e depois emprenhavam a cada três ou quatro anos. Esses números são
impressionantes, mas o objetivo de Leakey, na verdade, é mais instigante:
mostrar que o Homo erectus merece o qualificativo ‘humano’.
Ou seja, que sua mente
funcionava, grosso modo, da mesma forma que a mente do homem moderno — o Homo
sapiens, que surgiria mais de um milhão de anos mais tarde. Não é fácil definir
com rigor a idéia de humanidade. Mas, seja o que for, argumenta Leakey, não se
deve pensar que esse atributo tenha nascido subitamente, pronto e acabado, com
o aparecimento do homem moderno. “Acredito que as qualidades da mente humana, a
exemplo da forma do corpo humano, foram moldadas por uma fascinante história
evolutiva.” São os indícios dessa história que ele procura nos fósseis, mais do
que seus traços puramente físicos.
A pretensão é imensa, e
chega a ser comovente a persistência com que Leakey vasculha as evidências
disponíveis à cata de tudo o que possa ajudá-lo. O modo de vida dos hominídeos,
por exemplo, poderia deixar vestígios visíveis de sua presumida humanidade.
Será que eles dividiriam entre si as tarefas, repartindo posteriormente os seus
frutos? É possível que tivessem alguma espécie de lar, uma base, mesmo que
temporária? Talvez. Há uma área na margem leste do Lago Turkana (do lado oposto
em que morreu o menino) que pode ter sido um acampamento temporário. Trata-se
de um dos mais ricos depósitos de artefatos da época em que o erectus surgiu,
entre dois milhões e 1,5 milhão de anos atrás.
Aí se encontraram nada
menos que 2 000 fragmentos de ossos, pertencentes a uma dúzia de indivíduos, e
1 500 peças de pedra, com aspecto de instrumentos rudimentares. “Uma mixórdia
de ossos e pedras”, de acordo com seu descobridor Glyn Isaac, amigo de Leakey e
seu companheiro de pesquisas. Apesar disso, algumas peças estão mais
concentradas em um ponto da área, onde dois indivíduos aparentemente estiveram
sentados fabricando implementos. São simples calhaus lascados para ficarem mais
largos de um lado e mais pontudos do outro. Ou então, lascas finas que se
podiam usar na ponta de lança grosseira.
Vários ossos de hipopótamo,
antepassados das zebras, girafas e antílopes sugerem que os instrumentos foram
usados para desmembrar juntas e cortar carne. Comparando o suposto acampamento
pré-histórico com o que se vê entre os mais rudimentares povos do presente,
Leakey imagina que os hominídeos poderiam montar arapucas de pau para pegar
caça leve. Pela manhã, empunhando varas longas e afiladas para se defenderem ou
lancetar uma presa eventual, eles recolheriam os animais capturados. Ao mesmo
tempo, as mulheres fariam sua parte na economia do bando, coletando raízes ou
frutas das redondezas, transportadas em sacolas feitas de pele de animal.
As atividades do dia seriam
acaloradamente discutidas por meio de uma linguagem de gestos e sons mais ou
menos articulados. O suficiente, pelo menos, para amarrar, por meio da
comunicação, os complexos laços sociais do bando. Em tese, esse tipo de
raciocínio por analogia com as comunidades modernas é atraente. É realmente
assim que vivem alguns povos seminômades atuais, como os habitantes do deserto
do Kalahari, no sul da África, denominados! Kung (a exclamação representa um
estalo da língua contra o céu da boca). Mais importante, porém, é a idéia de
que a caça teve um papel revolucionário no passado distante.
O motivo é que os dentes
dos hominídeos podem ter evoluído para enfrentar uma dieta rica em carne, que
seria obtida por meio da caça. A mudança ocorre em três etapas, a começar pelos
chimpanzés e gorilas, cuja boca adapta-se bem a um cardápio de folhas macias e
frutas. Vêm depois os mais antigos hominídeos — quatro ou cinco espécies
agrupadas sob o nome coletivo de australopitecos — cujos dentes são desenhados
para macerar e moer partes duras das plantas. Esse perfil de pilão, finalmente,
desaparece na linhagem do menino de Turkana, que tem a boca de um animal
onívoro, isto é, que come de tudo. E tudo, nesse caso, tem boas chances de
incluir repastos regulares de carne.
Primeiro, porque o erectus
sem dúvida estava equipado para obtê-la: era hábil modelador de pedras
cortantes ou contundentes, e com certeza fabricava instrumentos de maneira
sistemática. É possível que os usasse apenas para limpar carcaças de animais
mortos por outros predadores. Mas é tentador imaginar que fosse mais ousado,
pois precisava de proteínas e calorias em abundância para saciar um cérebro
pelo menos 50% maior que o dos mais antigos australopitecos. Embora modesto, o
crânio do erectus representa um salto brusco para um volume superior a 700
centímetros cúbicos, comparado ao persistente padrão dos australopitecos, em
torno de 500 cm3.
Um e outro número ficam bem
aquém da média de 1 300 cm3 encontrada no Homo sapiens. Seja como for, se é
verdade que a caça fazia parte da rotina do erectus, é muito fácil examinar as
conseqüências desse fato sobre sua vida social: não se levam mulheres, idosos e
crianças ao um confronto com uma manada de antílopes. É muito razoável,
portanto, que os bandos de erectus dividissem o trabalho e repartissem seus
bens, tal como raciocina Leakey. Infelizmente para ele, são poucas — ou
absolutamente nenhuma, de acordo com alguns pesquisadores — as evidências de
que os instrumentos pré-históricos estejam associados com atividade de caça. E
a prova dos noves, entre paleoantropólogos, são as pistas enterradas no solo,
como não podia deixar de ser.
Vistos por esse ângulo,
nenhum dos muitos hominídeos de dois milhões de anos atrás é menos ou mais
humano que qualquer outro. A situação se agrava quando se considera que,
afinal, mesmo os chimpanzés organizam e executam caçadas em grupo, e
judiciosamente repartem os resultados entre si. Esse fato não ajuda a tese de
Leakey, e em última instância confunde o sentido que ele quer dar ao conceito
de humanidade — que certamente não inclui os chimpanzés. Glyn Isaac ilustrou
esse dilema apelando para certa dose de humor negro. “Suspeito que se esses
hominídeos vivessem nos dias de hoje, nós os colocaríamos no zoológico.”
Críticas à parte, não é
esse o sentimento que transpira dos argumentos e do livro de Leakey. Bem ao
contrário, ele desfaz o preconceito de que o Homo sapiens seja superior aos
seus antepassados Ele simplesmente mostra que, se os hominídeos não eram
modernos, também não eram criaturas inacabadas, meros rascunhos no caderno da
evolução. Eram apenas diferentes. Não é por outro motivo que a mais forte e duradoura
impressão legada pelo livro é a de se estar em outro planeta, no qual houvesse,
não apenas um, mas inúmeros homens vivendo lado a lado — um atestado de
abundância e prosperidade que já não existem mais.
Por Flávio Dieguez - Superinteressante
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