sábado, 12 de janeiro de 2013

O dia em que o homem nasceu

Descobertas arqueológicas apontam a África como berço do ser humano moderno, numa data muito mais recente do que se pensava.

Novos achados apontam a África como berço do ser humano moderno, numa data muito mais recente do que se pensava.

Em algum momento do passado, entre 92 mil e 45 mil anos atrás, numa caverna nos arredores de onde hoje existe a cidade de Nazaré, em Israel, um grupo de homens, mulheres e crianças olhou para o horizonte e viu se aproximar outro grupo de indivíduos que, de longe, tinham uma aparência familiar.

Quando os forasteiros chegaram mais perto, porém, os moradores da caverna perceberam que aqueles não eram seus semelhantes. Enquanto os habitantes do local tinham pele escura, estatura mediana e andar equilibrado, os recém-chegados eram claros, atarracados e cambaleavam. Apenas uma característica era comum a todos:

a curiosidade recíproca. Os da caverna que viria a ter o nome de Qafzeh faziam parte de uma espécie que agora a ciência identifica como Homo sapiens sapiens, os humanos anatomicamente modernos. 

Mais ainda: eram, ao que tudo indica, os primeiros representantes dessa espécie. Os visitantes, por sua vez, vindos das terras geladas da Europa, também eram humanos, mas de outra variedade, possivelmente mais arcaica, a dos Homo sapiens neanderthalensis os homens de Neandertal.

A origem do primeiro sapiens sapiens esteve por muito tempo ligada ao homem de Neandertal. O ser humano moderno era classificado como pertencente ao gênero Homo, um primata da família dos hominídeos, espécie sapiens (sábio). 

E o Neandertal era tido como um antepassado direto não sapiens, o Homo neanderthalensis. Mas, nos últimos cinco anos, descobertas arqueológicas e pesquisas de laboratório têm mostrado que essa concepção está errada. Os humanos de anatomia moderna subespécie sapiens sapiens não descendem daquele homem das cavernas européias, cujos fósseis foram achados pela primeira vez em 1856, no vale de Neander (daí o nome), Alemanha.

Os antropólogos agora acreditam também que a convivência competitiva com os sapiens sapiens foi o motivo da extinção dos neandertalenses. Essa nova concepção da origem do homem atual tem causado um acalorado debate entre os especialistas no assunto. As razões para a excitação são muitas, com um ingrediente perturbador adicional: a entrada em cena dos geneticistas num campo antes exclusivo dos especialistas em ossos e pedras.

A história que as novas pesquisas estão contando é que os humanos modernos surgiram há cerca de 200 mil anos na região central da África, a partir de onde teriam migrado para a Europa e Ásia, através do Oriente Médio, provavelmente competindo pelos recursos alimentares disponíveis com humanos mais primitivos e tomando o seu lugar. A teoria até então mais aceita sobre a origem do ser humano moderno começou a desmoronar em março do ano passado.

Christopher Stringer, do departamento de Paleontologia do Museu Britânico de História Natural, e seu colega Peter Andrew publicaram um trabalho na revista americana Science, expondo uma hipótese revolucionária. 

Para tanto, os dois pesquisadores ingleses não apenas estudaram a fundo achados recentes de fósseis como se valeram do apoio de outras áreas de pesquisa, como a biogeografia e a ecologia. 

Sem serem dogmáticos, Stringer e Andrew dizem que as maiores evidências "favorecem uma origem recente para o Homo sapiens sapiens na África", cristalizando o que já era uma convicção popular induzida pela origem também africana dos primatas. 

Até há bem pouco tempo os cientistas estiveram inclinados a acreditar que o humano moderno surgiu na Europa e que os fósseis do homem de Cro-Magnon, encontrados na França, em 1868, seriam uma prova disso. Outra prova estaria nas espetaculares cavernas com pinturas, no sul da França e no norte da Espanha.

Convencidos, a partir de novas evidências, de que enxergavam a verdadeira pré-história da raça humana, Stringer e Andrew sustentam que tudo teria começado no sul da África. 

O Homo erectus que na escala evolutiva dos primatas sucederia o Homo habilis e seria o último antes da linhagem sapiens arcaica, tendo vivido entre 1,6 milhão e 300 mil anos atrás (SUPERINTERESSANTE número 9, ano 2) começou a deixar sua terra natal há cerca de 1 milhão de anos, motivado principalmente, supõem os cientistas, pela curiosidade de saber o que havia além do horizonte. 

Acompanhando o traçado do que se chama hoje o Vale da Grande Fenda Africana que vai do norte de Moçambique até o norte da Etiópia, recheado de rios e lagos ao longo de seus 3 840 quilômetros , chegou, passados muitos séculos, ao Oriente Próximo, de onde, finalmente, alcançou a Europa e a Ásia.

Registros fósseis mostram que populações de erectus existiram nesses dois continentes até 300 mil anos atrás. "Desse ponto em diante", diz Stringer, "começa-se a ver sinais de mudança nos achados, com a presença de fósseis, já não mais do Homo erectus nem tampouco de humanos modernos". 

Na verdade, eles apresentam um mosaico de caracteres de ambas as espécies. Um desses mosaicos, o crânio de Petralona, foi desenterrado de uma caverna distante cerca de 48 quilômetros de Salônica, no nordeste da Grécia. "É certo que não se tratava de um Homo erectus".

Assegura Stringer. Mosaicos similares que lembram o Homo sapiens arcaico foram desenterrados em vários lugares da Grã-Bretanha, Alemanha, Oriente Próximo e África.

Juntos, dão uma clara indicação de que alguma coisa nova, não percebida antes, aconteceu na pré-história humana entre 300 mil e 50 mil anos atrás período em que se completou a metamorfose do Homo erectus em Homo sapiens sapiens, passando pelo Homo sapiens arcaico. 

Aqueles achados alimentaram duas interpretações opostas sobre como se deu a revolução no desenvolvimento do animal humano. A primeira, conhecida como teoria do candelabro, põe grande ênfase na cultura que compreende organização social, rituais, divisão do trabalho, tecnologia de armas e ferramentas como motor da evolução nos estágios mais recentes da pré-história humana. 

A cultura, nova e poderosa força de seleção natural, teria influído em todas as populações de Homo erectus espalhadas pelo mundo. Impulsionados por ela, os erectus teriam evoluído de forma independente até o Homo sapiens sapiens em várias partes do planeta. "Apelidei essa concepção de teoria do candelabro", diz o antropólogo William Howells, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, "para destacar que a ramificação aconteceu próxima à base da árvore evolucionária".

Se foi assim, a origem dos humanos modernos em todo o mundo não teria envolvido migrações recentes. As diferenças raciais de hoje seriam maiores e mais profundas que tão somente a cor da pele.

A segunda interpretação, que também Howells denominou hipótese Arca de Noé, favorecida pela maioria dos cientistas, afirma que o Homo sapiens sapiens, descendente dos Homo erectus que permaneceram em solo africano, teria surgido num único lugar a região austral da África. 

A partir dali, grupos teriam se espalhado por todo o planeta substituindo as populações humanas primitivas. Se for essa a teoria correta, o homem anatomicamente moderno se irradiou do centro de origem, num movimento ondulatório semelhante ao provocado por uma gota que cai num balde de água. As diferenças raciais existentes na humanidade, portanto, seriam muito recentes.

"Existe uma certa resistência em aceitar a teoria do candelabro porque é difícil crer que resultados biológicos semelhantes tenham acontecido simultaneamente e de forma independente", explica o professor Walter Neves, que coordena o Programa de Biologia Humana do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, e que recentemente discutiu o assunto numa visita que fez a seu colega Stringer, em Londres.

"Mesmo assim. continuo partidário dessa teoria. "Essa fidelidade se baseia no que ele acredita sejam evidências de uma "sapientização" simultânea acontecida na Europa, Oriente Médio, Ásia e África. Fósseis de seres de aparência convincentemente moderna e com idades bem mais antigas foram encontrados fora da Europa. 

Um desses fósseis jazia no Monte Carmel, próximo de Haifa, em Israel. Numa caverna, Mugharet es-Skhûl, os restos de dois indivíduos mostram traços que, embora não completamente modernos, parecem mais avançados que os do Neandertal. 

Submetidos ao teste de datação, alcançaram a idade de 45 mil anos e por isso mesmo têm sido considerados por alguns antropólogos como remanescentes de uma população intermediária entre o Neandertal e o Homo sapiens sapiens. 

Fósseis de outra caverna próxima, a já citada Qafzeh, também preenchem esse padrão. São os vestígios de onze indivíduos, todos com notável aspecto moderno. 

O mais impressionante é sua idade: 92 mil anos, duas vezes mais do que todas as datas previamente estabelecidas para os humanos modernos europeus. Isso fortalece a hipótese de um fenômeno de substituição de uma espécie por outra nessa parte do mundo.

Essas novas descobertas representam para alguns antropólogos evidências convincentes de que o humano moderno teve berço africano e não outro. A Genética reforça essa tese. 

Os antropólogos que estudam os fósseis desenham a árvore genealógica da espécie humana fazendo comparações entre a anatomia dos ossos desenterrados e a dos seres atuais. É um trabalho de baixo para cima no traçado da árvore genealógica. 

Com os geneticistas acontece ao contrário. Eles têm apenas as extremidades dos ramos dessa árvore para trabalhar as populações humanas modernas. Seu objetivo é determinar há quanto tempo as etnias que compõem a espécie humana negros, amarelos, caucasianos, etc. estão separadas e como se relacionam entre si.

A mais conhecida contribuição da Genética foi o descobrimento no coração do continente africano daquela que seria a mãe da espécie: a Eva de cor negra A popularidade dessa, literalmente, mãe preta resulta da técnica genética utilizada pelos cientistas Allan Wilson, Mark Stoneking e Rebecca Cann, todos da Universidade Berkeley, nos Estados Unidos.

Eles recorreram a um relógio genético existente na mitocôndria a microscópica estrutura cujo papel é gerar energia dentro de cada célula. Acontece que a mitocôndria contém uma cadeia de material genético, o DNA, que acumula mutações dez vezes mais depressa do que o DNA do núcleo da própria célula. 

Analisando o DNA mitocondrial de 150 mulheres de quatro populações geográficas distintas da África, Ásia, Europa, Austrália e Nova Guiné , os pesquisadores de Berkeley começaram então a buscar padrões. "Uma das coisas mais admiráveis", comenta Allan Wilson, "é que há pouca diferença entre as populações, o que significa que elas se separaram uma da outra muito recentemente".

Apesar das similaridades, dois grupos principais sobressaem: um contém somente padrões africanos de DNA, enquanto o outro é formado por padrões comuns a todos os grupos. "Fica claro que o grupo africano é o mais antigo de todos", concluiu Wilson.

No entanto para o professor Francisco Salzano, titular do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, que trabalha há trinta anos nessa área, "qualquer estimativa alcançada pelas técnicas genéticas ainda deve ser vista com cautela".

Supondo, contudo, que a hipótese Arca de Noé esteja correta e que os humanos modernos evoluíram na África há cerca de 200 mil anos, fica a pergunta: a partir de quem eles evoluíram? A resposta tradicional seria: a partir do Homo erectus. 

Um número crescente de antropólogos, porém, acredita que o Homo erectus não é tudo que parece."Quem existia na África naquele tempo não era o Homo erectus, mas uma espécie diferente de Homo. 

E foi essa espécie que ainda não tem nome que deu à luz o Homo sapiens arcaico", afirma Peter Andrew, um colega do inovador Christopher Stringer no Museu Britânico. 

Mais tarde, outras migrações envolvendo humanos totalmente modernos, sapiens sapiens, substituíram as populações estabelecidas dos sapiens arcaicos, incluindo o Neandertal. Teriam os humanos modernos sobrevivido no lugar dos sapiens arcaicos porque seriam ecologicamente mais bem-sucedidos? 

Tudo indica que sim. Erik Trinkaus, antropólogo da Universidade do Novo México, acredita que a anatomia do Neandertal, por exemplo, mostra que ele era muito menos eficiente provedor que o humano moderno. 

Isto é, a teoria de substituição não implica uma total dizimação de uma espécie por outra, mas simplesmente um lento desgaste de uma delas pelo modo de subsistência pouca coisa superior da outra.

O que, então, pode ter dotado os humanos modernos dessa pequena mas decisiva vantagem competitiva? As respostas são as mais diversas. Alguns pesquisadores acreditam que uma inteligência maior teria propiciado uma capacidade de planejamento mais complexa.

Outros buscam na linguagem o instrumento que teria dado aos humanos modernos não apenas um refinado meio de comunicação, mas certamente o atributo que nenhum outro ser vivo possui: pensar. E com quem se parecia esse antepassado direto do homem?

Anatomicamente, dizem os pesquisadores, era semelhante aos povos equatoriais de hoje pele escura, poucos pêlos, estatura mediana, com mandíbulas, nariz e boca levemente pronunciados. 

Os que deixaram a África austral e rumaram para o norte teriam ficado cada vez mais pálidos em conseqüência de uma adaptação evolutiva à diminuição da intensidade dos raios de sol.


A História Natural avalia que a maioria das espécies animais vive cerca de 2 milhões de anos antes de entrar em um processo de extinção ou de evolução para uma nova espécie.

O Homo sapiens sapiens, pelo que se deduz agora, habita o planeta somente há 200 mil anos. Ele alterou, porém, a velocidade do tempo de evolução com o acelerador da cultura. 

Por isso, acredita-se que o futuro da espécie continuará dependendo principalmente das realizações culturais, na acepção mais ampla da palavra. 

Nesse sentido, o rápido desenvolvimento da Biologia Molecular e da Engenharia Genética oferecem pelo menos um vislumbre de que mudanças fisiológicas, se acontecerem, dependerão mais do próprio homem do que da caprichosa roleta da natureza. 


Fonte: Revista Superinteressante, edição 29, fev. 1990.


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