O homem que inventou Cristo para conquistar fiéis, ele fez
concessões que desagradaram aos discípulos de Jesus – e ainda despertam
acirradas discussões entre pensadores e religiosos.
O mundo cristão não seria o mesmo sem a mensagem que São
Paulo transmitiu ao Império Romano. Para conquistar fiéis, ele fez concessões
que desagradaram aos discípulos de Jesus – e ainda despertam acirradas
discussões entre pensadores e religiosos. Afinal, Paulo espalhou ou deturpou a
palavra de Cristo?
Estamos no ano 34 da era cristã. Passaram-se poucos anos
desde a crucificação de Jesus. Sua mensagem espalhou-se rapidamente por toda a
Palestina e seus discípulos eram implacavelmente perseguidos, principalmente pelos
judeus. Os seguidores de Jesus são acusados de heresia e traição à Lei de
Moisés. Em Jerusalém, um jovem judeu chamado Saulo faz verdadeiras atrocidades
com os cristãos.
Persegue-os furiosamente, invade suas casas e os manda para
prisão. Informado de que, a cada dia, cresce a comunidade cristã em Damasco, na
Síria, pede e obtém do Sinédrio, o Supremo Tribunal da comunidade judaica de
Jerusalém, cartas de recomendação aos rabinos daquela cidade, autorizando-os a
caçar os hereges cristãos. Acompanhado de alguns homens, percorre a cavalo os
cerca de 200 quilômetros até Damasco. Depois de sete dias de viagem, sob um sol
escaldante, consegue finalmente avistar as muralhas da cidade.
Mas, de repente, uma forte luz vinda do céu incide sobre ele
e assusta seu cavalo, que o joga no chão. Naquele instante, o jovem judeu ouve
uma voz que diz: “Saulo, Saulo, por que me persegues"?
Atônito, ele indaga: “Quem és Senhor?” A voz responde:
“Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade e te dirão o que
deves fazer”.
O séquito de Saulo permanece mudo de espanto, sem entender
de onde vem aquela voz. Saulo, por sua vez, ergue-se do chão, mas não consegue
enxergar nada. Em Damasco, permanece três dias e três noites em jejum,
refletindo sobre o estranho acontecimento, até ser visitado por Ananias, um
discípulo de Cristo, que lhe diz: “Saulo, meu irmão, o Senhor me enviou. O
mesmo que te apareceu no caminho por onde vinhas. É para que recuperes a vista
e fiques repleto do Espírito Santo”.
Nesse exato momento, duas escamas caem dos olhos de Saulo,
que volta a ver. Em seguida, ele é batizado. Convertido, Saulo de Tarso
tornou-se aquele que talvez tenha sido o mais importante difusor da palavra de
Jesus: São Paulo.
O episódio acima, narrado em detalhes no livro Atos dos
Apóstolos, do Novo Testamento, teria marcado radicalmente a vida de Paulo. Não
é possível provar que ele tenha de fato acontecido. Os textos bíblicos são as
únicas fontes disponíveis para se reconstituir a história do santo – acreditar
neles é uma questão de fé. Tenha ocorrido de forma tão espetacular ou não, a
conversão de Paulo mudou para sempre os rumos da religião cristã. Para muitos
teólogos, Paulo foi um personagem fundamental nos primeiros anos do
cristianismo.
Seu trabalho de evangelização foi, em grande parte,
responsável pelo caráter universal da doutrina cristã e sua mensagem, expressa
em cartas enviadas às comunidades que fundava, ainda hoje é considerada o
alicerce da jurisprudência, da moral e da filosofia modernas do Ocidente.
Enquanto a maioria dos apóstolos que conviveram com Jesus restringiram sua
pregação à Palestina, Paulo levou a palavra de Cristo para lugares distantes,
como a Grécia e Roma. Sua importância na construção da Igreja primitiva é tão
grande que muitos estudiosos atribuem a ele o título de pai do cristianismo.
“Paulo desempenhou um papel maior na evangelização dos
primeiros cristãos”, diz o biblista Jerome Murphy-O’Connor, professor da Escola
Bíblica e Arqueológica de Jerusalém e um dos maiores estudiosos do santo. O
historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), especialista em cristianismo e judaísmo antigos, concorda: “O
cristianismo, tal como existe hoje, deve muito a Paulo. Se não fosse o
apóstolo, ele provavelmente não teria passado de mais uma seita judaica”.
Isso não quer dizer que o trabalho dos 12 apóstolos tenha
sido irrelevante, mas eles pregaram numa região, a Palestina, que viria a ser devastada
pelos romanos entre os anos 66 e 70. “Sem dúvida, Paulo foi o apóstolo que teve
maior repercussão com o passar dos séculos”, afirma o teólogo Pedro Lima
Vasconcellos, professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.
O termo apóstolo, no sentido de evangelizador, é
freqüentemente usado para se referir a São Paulo. Não há evidências históricas,
entretanto, de que ele tenha conhecido Jesus Cristo.
A influência de Paulo é indiscutível. Mas, para uma corrente
de historiadores e teólogos, ele deturpou os ensinamentos de Jesus Cristo – a
ponto de a mensagem cristã que sobreviveu ao longo dos séculos ter origem não
em Cristo, mas em Paulo. Esses pensadores julgam ser mais correto dizer que o
que existe hoje é um “paulinismo”, não um cristianismo.
“As cartas de São Paulo são uma fraude nos ensinamentos de
Cristo. São comentários pessoais à parte da experiência pessoal de Cristo”,
afirmou o líder pacifista indiano Mahatma Ghandi, em 1928. Opinião semelhante
tem o prêmio Nobel da Paz de 1952, o alemão Albert Schweitzer, que declarou:
“Paulo nos mostra com que completa indiferença à vida terrena de Jesus foi
tomada”.
As principais críticas da corrente antipaulina concentram-se
em pontos polêmicos das cartas do apóstolo. Nelas, entre outras coisas, Paulo
defende a obediência dos cristãos ao opressivo Império Romano, bem como o
pagamento de impostos, faz apologia da escravidão, legitima a submissão
feminina e esboça uma doutrina da salvação distinta daquela que, segundo
teólogos antipaulinos, teria sido defendida por Jesus.
“A mentira que foi Paulo tem durado tanto tempo à base da
violência. Sua conversão foi uma farsa”, afirma Fernando Travi, fundador e
líder da Igreja Essênia Brasileira. Os essênios eram uma das correntes do
judaísmo há dois mil anos, convertidos na primeira hora ao cristianismo. “Ele
criou uma religião híbrida. A prova disso é o mundo que nos cerca. Um mundo
cheio de guerra, de sofrimentos e de desespero.”
Paulo: Judeu, grego e romano.
Para entender melhor o papel de São Paulo na origem e
construção do cristianismo é preciso voltar no tempo e acompanhar de perto sua
vida. O principal relato sobre ele está presente nos Atos dos Apóstolos, livro
escrito pelo evangelista Lucas, que foi também dos maiores discípulos de Paulo.
Seus relatos, no entanto, não são considerados um retrato fiel dos
acontecimentos.
“Os Atos devem ter sido escritos cerca de 20 a 30 anos após
a morte de Paulo, quando ele já poderia estar caindo no esquecimento. Lucas,
então, expressa uma visão romanceada do apóstolo, transformando-o em um herói
ou, mais do que isso, em um modelo de discípulo”, afirma José Bortolini, padre
da Congregação Pia Sociedade de São Paulo, mestre em exegese bíblica e autor do
livro Introdução a Paulo e suas Cartas. Outra fonte de informação sobre o
apóstolo são as cartas (ou epístolas) escritas por ele para as comunidades
cristãs que tinha fundado.
Com base nessas duas fontes, sabemos que Paulo era um judeu
detentor de cidadania romana, criado em um ambiente culturalmente grego.
Ele nasceu em Tarso, na Ásia Menor, onde atualmente está a
Turquia. Era uma cidade grande, com mais de 200 mil habitantes, por onde
passava uma estrada que ligava a Europa à Ásia. Situada na província romana da
Cilícia, a Tarso de então era predominantemente grega – um dos mais
efervescentes centros de cultura do mundo helênico, chegando a rivalizar com
Atenas. Mas também era cosmopolita. Abrigava um porto fluvial movimentado e se
impunha como um importante pólo comercial. Suas ruas estreitas viviam apinhadas
de gente e suas casas abrigavam povos de várias regiões: egípcios, bretões,
gauleses, núbios e sírios – além dos judeus (como a família de Paulo), que na
época já haviam se assentado em várias cidades do império.
A cidadania romana, citada nos escritos de Lucas, é um ponto
controverso da biografia de Paulo. Tê-la garantia alguns privilégios, como o
direito de participar das assembléias que decidiam questões sobre a vida e a
organização da cidade e a isenção do pagamento de alguns impostos. Os cidadãos
romanos também não podiam ser crucificados, caso fossem condenados à morte.
Segundo Lucas, Paulo herdara a cidadania do pai ou do avô, que a teriam obtido
por mérito ou comprado por uma volumosa quantia. Mas o apóstolo nunca se
declarou romano em suas cartas.
Para o biblista Murphy-O’Connor, o silêncio é compreensível:
“Não havia razão para Paulo mencionar sua posição social em cartas a
comunidades que ele desejava convencer de que ‘nossa pátria está nos céus’,
escreve o teólogo no livro Paulo: Biografia Crítica”. Cidadão romano ou não,
Paulo provavelmente fazia parte de uma elite – seu pai especula-se, era dono de
uma oficina onde se fabricavam tendas. Ele mesmo, aliás, dominava esse ofício.
O ano exato do nascimento de Paulo, bem como a data dos
principais acontecimentos de sua vida, é, ainda hoje, motivo de controvérsia.
Muitos historiadores supõem que ele tenha nascido por volta do ano 5 da era
cristã. Era, portanto, alguns anos mais novos do que Jesus – cujo nascimento,
segundo descobertas históricas recentes, é datado entre 6 e 4 a.C. Paulo foi
educado na casa de seus pais, na sinagoga e na escola ligada a ela. Aos 15
anos, deixou Tarso e mudou-se para Jerusalém, onde matriculou-se na escola de
Gamaliel, um dos sábios mais respeitados do mundo judaico. Paulo teve uma
formação acadêmica de primeira – nos parâmetros atuais, algo equivalente a um
doutorado em Harvard.
Nos tempos de estudante, Paulo presenciou uma situação que
estaria na origem de seu “cristo fobia”. Um dos alunos mais brilhantes era um
jovem chamado Estêvão, um nazareno – nome dado aos que seguiam os ensinamentos
de Cristo. Em uma discussão, Estêvão foi fiel a sua fé e declarou que Jesus era
o messias: tal afirmação provocou a ira dos colegas, inclusive de Paulo. Pela
blasfêmia, Estêvão foi levado diante do Sinédrio e condenado à morte por
apedrejamento. Conforme o costume da época, as pessoas que iam apedrejar o
condenado deveriam tirar suas próprias vestes e colocá-las aos pés de uma
testemunha. No martírio de Estevão, a testemunha era Paulo.
A partir desse episódio, Paulo, que já era um intransigente
defensor da lei e dos costumes judaicos, viu nos seguidores de Cristo uma
ameaça real à sua própria religião. Foi então que passou a cultivar um ódio
crescente pelos nazarenos e tornou-se um implacável perseguidor dos membros
dessa seita. Depois de muito aterrorizar os cristãos de Jerusalém, decidiu agir
na Síria. Foi quando aconteceu sua conversão no caminho de Damasco.
O missionário viajante
Paulo tinha cerca de 30 anos quando ocorreu seu encontro
místico com Jesus. Depois de ter se tornado um fervoroso discípulo do Nazareno,
viveu algum tempo na comunidade cristã damasquina, até ser expulso pelos
judeus. Refugiou-se por cerca de dois anos na Arábia – território dominado pela
tribo dos nabateus –, que se estendia do mar Vermelho até Damasco, margeando a
Palestina pelo leste. Nesse período, estudou e refletiu sobre os ensinamentos
de Cristo. Por volta do ano 37, retornou a Damasco, onde fez suas primeiras pregações.
Mais uma vez, provocou a fúria da comunidade judaica e teve
de deixar a cidade numa fuga cinematográfica. Como os portões da cidade estavam
vigiados, ele escondeu-se num cesto que foi descido pelas muralhas. Era noite e
Paulo andou por cinco horas até sentir-se a salvo. Após seis dias de caminhada,
chegou a Jerusalém. Havia três anos que ele tinha deixado à cidade.
Os cristãos de Jerusalém o receberam com desconfiança.
Afinal de contas, ainda estavam vivas na memória as atrocidades cometidas por
Paulo. Coube a Barnabé, um ex-colega da escola de Gamaliel convertido ao
cristianismo, apresentá-lo aos apóstolos. Foi nessa ocasião que aconteceu o
primeiro encontro com Pedro, um dos discípulos mais próximos de Jesus. Durante
15 dias, eles permaneceram juntos. Mas não tardou para o Sinédrio saber que
Paulo, agora cristianizado, havia voltado. Diante do perigo que corria em
Jerusalém, Paulo mais uma vez teve de fugir: o destino foi Tarso, sua cidade
natal, onde permaneceu por sete ou oito anos. Nada se sabe sobre sua vida nesse
período.
Por volta de 45 D.C., convidado por Barnabé, Paulo mudou-se
para Antióquia da Síria, onde a igreja dos nazarenos crescia rapidamente.
Depois de Roma e Alexandria, no Egito, Antióquia era a terceira maior cidade do
Império Romano. “Diferentemente do que acontecia em Jerusalém, onde os
seguidores de Jesus ainda estavam ligados à lei e aos rituais judaicos, em
Antióquia se respirava ar novo – lá, boa parte dos neocristãos vinha do
paganismo”, afirma padre Bortolini. O termo cristão, como designação dos
discípulos de Jesus, surgiu pela primeira vez nessa cidade. Esse fato
reveste-se de importância porque pela primeira vez os seguidores de Jesus não
são mais vistos como judeus dissidentes.
Foi de lá que Paulo – descrito em textos apócrifos como “um
homem pequeno com uma grande cabeça careca” – partiu para sua primeira jornada
missionária. Nessa ocasião, ele tinha cerca de 40 anos. Durante 12 anos, de 46
a 58, Paulo empreendeu quatro viagens evangelizadoras, visitando boa parte do
Império Romano, que se estendia da Grã-Bretanha ao Oriente Médio, passando pelo
norte da África. Eram jornadas árduas, feitas a pé ou de navio, sempre na
companhia de outros discípulos.
Quando viajavam por terra, seguiam pelas estradas romanas,
percorrendo 30 quilômetros por dia. O perigo os espreitava como escreve o
apóstolo em uma de suas epístolas aos coríntios: “Sofri perigos nos rios,
perigo por parte de ladrões, perigo por parte dos meus irmãos de raça, perigo
por parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar,
perigos por parte dos falsos irmãos”.
A estratégia pastoral de Paulo era bem definida. Pregava nas
sinagogas, em casas e praças de grandes centros urbanos, que funcionavam como
pólos irradiadores da mensagem. Ao sair, designava um líder responsável pelo
rebanho. A primeira viagem, entre 46 e 48, foi feita em companhia de Barnabé e
de Marcos, outro discípulo cristão, o mesmo a quem é atribuído um dos quatro
evangelhos. Foram à ilha de Chipre e percorreram a Ásia Menor (veja mapa) antes
de retornar a Antióquia. É a partir dessa primeira expedição que Paulo deixa de
ser chamado pelo nome judeu Saulo – a mudança é narrada por Lucas no Ato dos
Apóstolos, 13:9.
Antes de partir para a segunda viagem, Paulo foi intimado a
participar do Concílio Apostólico de Jerusalém, em 49, que reuniu a nata do
cristianismo primitivo. Foi um encontro tenso, aonde, pela primeira vez, vieram
à tona as divergências entre Paulo e o grupo de judeu-cristãos, tendo à frente
Pedro e Tiago Menor, líder da comunidade cristã em Jerusalém. A assembléia
discutiu assuntos delicados, como a obrigatoriedade da circuncisão para os
pagãos convertidos ao cristianismo.
A questão era importante e polêmica, pois a circuncisão era
encarada como a porta de entrada do judaísmo. Ao aceitá-la, os convertidos
assumiam que adotariam integralmente a cultura judaica. Paulo era contra, pois
acreditava que o sacramento do batismo era suficiente para a conversão. Em suas
pregações, ele encontrava forte resistência dos pagãos, que não entendiam por
que deveriam se submeter ao ritual de iniciação judaico para tornarem-se
cristãos. Depois de acirradas discussões, Paulo saiu vitorioso.
Foi, em parte, por causa dessa liberalização que Paulo
arrebanhou um número tão grande de fiéis. Ao final do encontro, Paulo recebeu a
alcunha de “apóstolo dos gentios”, em contraposição a Pedro, chamado de
“apóstolo dos judeus”.
A segunda jornada missionária começou depois do Concílio de
Jerusalém e estendeu-se até 52. O ponto alto dessa jornada foi a pregação na
Europa. Pela primeira vez, a palavra de Deus deixava a Ásia e espalhava-se por
um novo continente. Paulo visitou várias cidades gregas, fundando importantes
núcleos cristãos. “Foi por causa dessa passagem [da Ásia para a Europa] que o
cristianismo sobreviveu e se desenvolveu”, argumenta padre Bortolini.
Foi também nessa jornada que Paulo escreveu, em 51, a
Epístola aos Tessalonicenses, o mais antigo documento do Novo Testamento. Nas
cartas paulinas, o trabalho braçal ficava por conta de escribas: Paulo as ditava
e as assinava de próprio punho para autenticar o documento. A maioria delas foi
escrita em grego, mesma língua usada por Paulo em suas pregações. Esse era o
idioma universal, comparável ao que hoje é o inglês.
O apóstolo também se expressava em hebraico, língua da elite
judaica, na qual foi escrita a maior parte dos livros do Antigo Testamento, e
em aramaico, a língua materna de Jesus e corrente nas camadas populares da
Palestina. Mesmo sendo poliglota, o apóstolo encontrava dificuldade para se
comunicar em suas peregrinações, diante da multiplicidade de línguas e dialetos
daquela época. Em muitas ocasiões, recorria a intérpretes.
Em uma de suas cartas, a Epístola aos Gálatas, percebe-se a
tensão existente entre Paulo e os 12 apóstolos que conviveram com Cristo. Nela,
Paulo afirma que “enfrentou abertamente [Pedro, em Antióquia], porque ele se
tornara digno de censura”. O motivo da briga foram dois preceitos alimentares
judaicos. Pedro defendia que os neocristãos não poderiam sentar-se à mesa com
gentios – seus iguais até pouco antes. Deveriam também rejeitar sobras de
carnes de animais sacrificados aos deuses pagãos. Paulo discordava e teve uma
acirrada discussão com Pedro.
Na terceira viagem missionária, de 53 a 57, Paulo deteve-se
por três anos em Éfeso, a capital da Ásia Menor. Lá, presume-se, esteve preso
por alguns meses – ao longo de sua vida, o apóstolo deve ter permanecido quatro
anos atrás das grades. Durante essa jornada, coletou dinheiro para os cristãos
pobres de Jerusalém. No retorno à Terra Santa, não se sabe como foi recebido
por Tiago, chefe da igreja de Jerusalém. Nem Lucas nem Paulo deixam claro se
ele aceitou o dinheiro “impuro” da coleta. Sabe-se apenas que foi na volta a
Jerusalém que Paulo foi preso, na Praça do Templo, sob a acusação de introduzir
gentios na sinagoga. Os judeus estavam furiosos com a presença do pregador na
cidade e, temendo por sua segurança, o tribuno romano Cláudio Lísias o
encarcerou de novo. Dessa vez, foi em Cesaréia, perto de Jerusalém, onde
amargou dois anos de reclusão. Eis que ele pediu para ser julgado em Roma pelo
imperador – direito conferido aos cidadãos romanos.
No outono de 60, o apóstolo foi enviado à capital imperial,
uma cidade com quase 1 milhão de moradores. Paulo foi saudado pela comunidade
cristã e permaneceu em prisão domiciliar, vigiada por soldados. Encontrava-se
com as pessoas, mas não podia sair de casa. Aproveitou esse período para
transmitir a palavra de Deus. Depois de dois anos de cativeiro, seu processo
foi encerrado sem uma sentença condenatória.
Pouco se sabe a respeito dos anos seguintes da vida de
Paulo, já que o Novo Testamento não dá indicações do que aconteceu com ele após
a prisão em Roma. Mas, segundo a tradição, acredita-se que tenha empreendido
uma viagem à Espanha ou visitado as igrejas cristãs que fundara na Grécia e
Ásia Menor e retornado a Roma na primavera de 67. O império era chefiado por
Nero, que anos antes havia ateado fogo na cidade e jogara a culpa pelo desastre
nos seguidores de Jesus. Por isso, os cristãos eram duramente perseguidos e
tinham que se reunir em catacumbas para escapar da fúria insana do imperador.
Quando capturados, viravam presa para as feras do Coliseu. Ao deparar com essa
situação, Paulo empenhou-se em reconstruir a comunidade. Não tardou e foi preso,
acusado de chefiar a seita dos nazarenos.
Na prisão, escreveu sua derradeira carta ao discípulo
Timóteo, um dos líderes da igreja de Éfeso. Ele sabia que não escaparia da
morte. No outono daquele ano, foi levado pelos guardas para fora da cidade e
degolado. No local de seu martírio foi construída a Praça Tre Fontane e perto
dali, junto ao seu túmulo, erguida a basílica de São Paulo Extramuros. Diz a
lenda que, no momento de sua execução, uma cega de nome Petronila aproximou-se
do apóstolo e lhe ofereceu um véu para cobrir-lhe o rosto. Paulo teria
devolvido o véu à mulher e, quando ela o colocou sobre os seus próprios olhos,
recobrou milagrosamente a visão. A conversão de Paulo é comemorada no dia 25 de
janeiro. Foi uma escolha aleatória, já que não se sabe o dia exato de sua
conversão.
Como a cidade de São Paulo foi fundada nesse dia, acabou
recebendo o nome do santo. A festa de São Paulo é celebrada em 29 de junho,
junto com a de São Pedro. Foi uma forma encontrada pela Igreja para homenagear,
de uma só vez, os dois líderes máximos do cristianismo primitivo.
Cristianismo ou paulinismo?
As 13 cartas escritas por São Paulo sintetizam o pensamento
do apóstolo, que viria a moldar a doutrina cristã. Elas foram redigidas entre
os anos 50 e 60 e são os mais antigos documentos da história do cristianismo –
os quatro evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João ficaram prontos
apenas entre os anos 70 e 100. A influência do apóstolo na consolidação da
doutrina cristã pode ser medida pelo fato de suas epístolas representarem quase
metade dos 27 livros do Novo Testamento. Com elas, dizem os estudiosos, Paulo
não tinha a pretensão de formular tratados teológicos. “Elas são resultado de
experiências vivenciadas pelas comunidades paulinas”, afirma o André
Chevitarese. Uma corrente de biblistas defende que nem todas foram de fato
escritas por Paulo – algumas teriam sido redigidas por seus discípulos após a
morte do apóstolo. “Elas são muito diferentes em estilo literário e conteúdo”,
afirma Pedro Vasconcellos, da PUC. Para a Igreja, no entanto, todas as cartas
são de autoria de Paulo.
Se for uma rica fonte de difusão da doutrina cristã, esses
documentos são também a principal causa da controvérsia sobre o apóstolo. Na
opinião de Fernando Travi, líder da Igreja Essênia Brasileira, a descoberta, no
século passado, de escrituras datadas dos primeiros anos do cristianismo, como
os Manuscritos do Mar Morto, o Evangelho dos 12 Santos (ou da Vida Perfeita) e
o Evangelho Essênio da Paz, indica que boa parte do conteúdo das cartas de
Paulo está em oposição aos ensinamentos de Jesus (leia quadro na pág. 64).
“Existem sérios indícios de que, como num plano de
sabotagem, Paulo divulgou uma doutrina falsificada em nome do messias”, diz
ele. Opinião parecida tem o pastor batista americano Edgar Jones, autor do
livro Paulo: O Estranho. “Jesus de Nazaré deve ser cuidadosamente diferenciado
do Jesus de Paulo. Gerações e séculos passaram até que a corrente paulina com
seu forte apelo em favor do Império Romano ganhasse ascendência sobre a
corrente apostólica”, diz o teólogo.
O fato é que, até o século 4, o cristianismo dividia-se em
duas correntes distintas, uma liderada pelos discípulos de Paulo e outra pelos
seguidores dos apóstolos de Cristo. Quando o cristianismo tornou-se a religião
oficial do Império Romano, a corrente paulina saiu-se vitoriosa. “As idéias de
Paulo, afáveis aos dominadores, foram definitivamente incorporadas à doutrina
cristã”, diz Fernando.
Para os críticos de Paulo, um exemplo dessa “afabilidade”
está presente na Epístola aos Romanos. “Cada um se submeta às autoridades
constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem
foram estabelecidas por Deus. Aquele que se revolta contra a autoridade opõe-se
à ordem estabelecida por Deus”, escreve Paulo. E continua: “É também por isso
que pagais impostos, pois os que governam são servidores de Deus”. “Essa
passagem revela que ele estava a serviço das autoridades romanas. Jesus, por
sua vez, se insurgia contra as leis de Estado”, afirma Fernando. Para os
defensores de Paulo, esse texto foi tirado de seu contexto e tornou-se, ao
longo dos séculos, uma teoria metafísica do Estado. “O texto só tinha valor
para quem vivia em Roma, onde qualquer movimento de desobediência seria
esmagado”, diz o teólogo Pedro Vasconcellos.
Para outros teóricos, deve-se diferenciar a doutrina
religiosa paulina das opiniões do apóstolo sobre a ordem social. “A teoria de
Igreja de Paulo é fundamentada no antiautoritarismo, o que influenciou muito a
doutrina protestante. Na sua igreja, a idéia de liberdade é plena, mas quando
ela é extrapolada para o meio social, surge o seu conservadorismo”, diz o
pastor luterano Milton Schwantes, professor da Universidade Metodista de São
Paulo e doutor em literatura bíblica. O sacerdote franciscano Jacir de Freitas
Faria, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico (PIB), de
Roma, comunga da mesma opinião: “Paulo é uma figura basilar do cristianismo,
mas não podemos deixar de ser críticos a ele nessa relação com o Império
Romano”.
Outro ponto controverso das epístolas paulinas refere-se à
defesa que seu autor faz da escravidão. Na Epístola aos Efésios, Paulo é
taxativo: “Servos, obedecei, com temor e tremor, em simplicidade de coração, a
vossos senhores nesta vida, como a Cristo”. Para os antipaulinos, o apoio dado
pelo apóstolo à escravidão tem sido usado pela Igreja ao longo dos séculos para
legitimar situações espúrias de dominação e diverge radicalmente da palavra de
Cristo, que pregava um mundo livre de opressões.
A corrente pró-paulina argumenta, mais uma vez, que é
preciso analisar o contexto histórico para entender seus escritos: “Sua falha
em condenar a escravidão torna-se compreensível quando sabemos que cerca de 60%
da população de qualquer cidade grande daquele tempo era formada por escravos.
Toda economia estava estruturada em torno desse fato e, por isso, uma atitude
crítica seria incompreensível”, afirma o biblicista Jerome Murphy-O’Connor, de
Jerusalém.
O apóstolo dos pagãos também é bombardeado por suas posições
a respeito das mulheres. Na carta endereçada à comunidade cristã de Colosso,
ele escreve: “Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem
com pudor e modéstia. (...) Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio,
com toda submissão. Não permito que a mulher ensine, ou domine o homem”. Suas
palavras atraem até hoje a ira das feministas, que o acusam de misoginia. Seus
defensores, por outro lado, argumentam que , ao contrário, ele incentivava a
participação das mulheres na vida social. “Paulo acreditou firmemente na
igualdade entre os sexos e, em suas igrejas, as mulheres exerciam todos os
ministérios. Alguns exegetas munidos de preconceito interpretaram erroneamente
os textos paulinos”, diz Murphy-O’Connor.
Outro petardo disparado pelos críticos diz respeito à
doutrina da salvação defendida por Paulo. “Paulo diz que os pecados são
perdoados se a pessoa acreditar que Jesus morreu na cruz por ela. É a doutrina
da salvação em que o herói derrama seu sangue e todos são perdoados por causa
dele. Enquanto isso, Jesus diz: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’. Para
Jesus, a salvação será dada àqueles que seguirem seus ensinamentos”, afirma
Fernando Travi. Os defensores de Paulo discordam e afirmam que o apóstolo foi
mais uma vez mal interpretado.
“Creio que houve uma transformação conservadora da mensagem
de Paulo. Temos que libertá-lo das idéias errôneas a seu respeito perpetuadas
ao longo dos séculos”, diz Pedro Vasconcellos, da PUC.
Conservador ou radical, fiel ou não a Jesus Cristo, São
Paulo foi, sem dúvida, um dos poucos evangelizadores – se não o único – a fazer
o cristianismo passar da cultura semita à greco-romana, possibilitando que ela
se tornasse uma religião mundial. “Ele criou condições para que povos não
judaicos, ao receberem a mensagem de Deus, fossem inseridos de forma
igualitária na comunidade cristã”, afirma o André Chevitarese, da UFRJ. Sem
Paulo, considerado por muitos o pai do cristianismo, a história da humanidade
teria tomado outro rumo. A Idade Média, marcada pela força da Igreja Católica,
ocorreria de outra forma e o mundo em que vivemos seria totalmente diferente.
Nada seria como é.
Por Yuri Vasconcelos - Superinteressante
Nenhum comentário:
Postar um comentário